sábado, 28 de abril de 2007

Pra não dizer que não falei do povo - O projeto cepecista e a instituição da MPB

Integrantes do CPC da UNE, encenando uma peça de teatro na sede do sindicato dos metalúrgicos (RJ), onde estava em andamento a Revolta dos Marinheiros. 25/26 de março 1964.
(CPDOC/
FGV/ R47 Cruzeiro, vol.36, n.28, abr 1964)


Pra não dizer que não falei do povo

- O projeto cepecista e a instituição da MPB -


Por Maria Luiza de Castro Muniz
Estudante de Jornalismo do Instituto de Arte e Comunicação Social/ UFF.

Introdução.
Abrimos a cortina para o passado e descobrimos que ele está por ser constantemente repensado, analisado, discutido, rememorado. Cristalizar visões referentes aos fatos históricos é recusar a possibilidade de descobrir o ‘novo’. E este se apresenta a todo momento, com novas formas e cores, desafiando gostos, tradições e (pré-)conceitos. Na música não é diferente. Se, numa mesa de bar (lugar bastante propício para o tema), lançamos entre não estudiosos uma questão sobre “O que é Música Popular Brasileira?” não faltarão opiniões destoantes. Haverá quem deseje tornar o conceito mais elástico, abrangendo vários estilos, e aqueles que defenderão ser ‘MPB’ apenas um seleto grupo de músicas de artistas já consagrados e seus ‘apadrinhados’. Em “O conceito de ‘MPB’ nos anos 60”, Marcos Napolitano aborda um processo que redimensionou e consagrou a sigla em questão, a qual ele considera uma instituição sócio-cultural forjada a partir de um debate estético-ideológico ocorrido ao longo daquela década.
Napolitano afirma que o significado da sigla ‘MPB’ representa uma “fonte de legitimação na hierarquia sociocultural brasileira” (NAPOLITANO, Marcos: 1999, p. 13). Contudo, defende que a vocação que a ‘MPB’ possui para “instituir-se”, ensejando uma autonomia em relação a outros espaços socioculturais, foi permanentemente tensionada pela vontade de engajamento dos artistas voltados para grandes problemas sociais e políticos. Neste trabalho de conclusão da disciplina Música Popular Brasileira e Comunicação de Massa, busco analisar alguns dos impasses surgidos em torno do nacional-popular e que estão inseridos no contexto do debate a que Napolitano se refere. Para tanto, escolhi lançar o foco desta análise sobre o Centro Popular de Cultura, o CPC da União Nacional dos Estudantes, um espaço que se dedicou a produzir uma arte engajada, sendo representativa da tendência nacional-engajada. Antes de dissertar propriamente sobre os CPCs, é preciso mencionar o contexto em que surge este projeto.
O CPC surge num momento caracterizado em inúmeros relatos como sendo de destacada ebulição intelectual. Já no início dos anos 60, o vice de Jânio Quadros, João Goulart, assumia a presidência trazendo esperanças para uns e preocupações para outros. Mas tanto à esquerda quanto à direita do governo o clima era de inquietação. O governo de Jango, petebista e herdeiro do nacional-populismo de Vargas, abria espaço para um diálogo nunca visto com setores populares, uma possibilidade nunca antes alcançada de avanços sociais, incluindo a discussão sobre um grande tabu: a Reforma Agrária.
No âmbito internacional, a experiência triunfante da ilha cubana animava jovens secundaristas e universitários ansiosos para verem a versão brasileira da revolução socialista, inspirada nos moldes marxistas-leninistas. Heloísa Buarque de Holanda e Marcos A. Gonçalves, autores do livro “Cultura e participação nos anos 60”, ressaltam algumas críticas feitas ao cálculo político da esquerda brasileira, liderada especialmente pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Seguindo uma visão etapista do processo revolucionário, o PCB defendia a união do operariado, do campesinato e do que se reconhecia como uma “burguesia nacional”, interessada na industrialização e no progresso. Citando Caio Prado Jr., os autores defendem que o erro de análise da etapa “democrático-burguesa” estava em se atribuir à sociedade brasileira o predomínio de uma estrutura agrária do tipo feudal e aliada ao imperialismo em oposição a um setor urbano supostamente progressista e patriótico. Os autores ressaltam ainda que uma “ilusão de poder” teria sido fatal, uma vez que favorecia uma política de cúpula distante da mobilização e organização das forças populares, que não puderam esboçar qualquer resistência organizada ao golpe de 1964 (HOLLANDA, Heloísa B. & GONÇALVES, Marcos: 1984, p.18).
Esta consideração é especialmente importante para a análise proposta neste trabalho, já que o CPC é apresentado como representante de uma arte revolucionária que pretende ser popular ao se identificar com a aspiração fundamental do povo.
Retomando a idéia do começo acerca de novos elementos que surgem a partir de uma visita ao passado, vale lembrar que as fórmulas antigas muitas vezes ganham diferentes contornos ou o “velho” ganha nova roupagem e se apresenta como inovação. Uma característica do fim dos anos 50 e início dos anos 60 foi o surgimento do “novo”. O cinema era novo e a bossa era nova. Mas para o projeto cepecista o novo era o povo. A aproximação do intelectual com o “povo”, segundo o Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, deveria privilegiar o compromisso de clareza assumido com o público, impulsionando-o para ação revolucionária. No entanto, já vale adiantar uma das críticas feitas ao projeto cepecista: a natureza paternalista dessa pretendida aproximação.

No ritmo da ‘arte popular revolucionária’.
O bossa-novista Carlos Lyra foi fundador e diretor musical do CPC do Rio e foi um dos responsáveis por uma mudança de rumo que favoreceu o surgimento do projeto cepecista, transformando a bossa do amor, do sorriso e da flor.
“(...) a minha presença no CPC fez com que a minha cabeça musical mudasse. Eu já estava preocupado em fazer música do tipo Marcha da 4a feira de Cinzas e não só em criar canções como Você e eu e Coisa mais linda... mas foi o Centro Popular de Cultura que fez deslanchar tudo isso. Como eu era fundador e diretor musical do CPC do Rio, fazia parte do meu trabalho revisar a música brasileira. Enquanto a bossa nova era busca da forma, com o CPC começou uma busca do conteúdo e isso veio influenciar todos os bossa-novistas, para falar a verdade. Nessa fase, é possível perceber que o Tom Jobim, eu, todos nós começamos a mudar. Todo o conteúdo mudou em função do Centro Popular de Cultura. Mesmo que as pessoas não fossem ligadas à esquerda, elas estavam conscientes da realidade social do Brasil, e isso é muito importante para a nossa identidade cultural”.
No site oficial do cantor (http://www.carloslyra.com ), em resumida biografia, Marcos Ferreira diz que a dicotomia que germinava latente entre os bossa-novistas brota mais fortemente a partir de 1961, quando Lyra funda ao lado de outros artistas e intelectuais o Centro Popular de Cultura da UNE. A politização da obra do compositor e cantor já havia dado seus primeiros frutos no ano anterior, com a composição da trilha da peça “A mais-valia vai acabar, Seu Edgar”, da autoria de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, importante nome no surgimento do projeto cepecista. Em 1963, Lyra gravou, com Francisco de Assis e sob o patrocínio da UNE, a “Canção do Subdesenvolvido”.

Canção do subdesenvolvido
Carlos Lyra e Francisco de Assis / 1962
O Brasil é uma terra de amores,
Alcatifada de flores,
Onde a brisa fala amores,
Nas lindas tardes de abril.
Correi pras bandas do Sul.
Debaixo de um céu de anil,
Encontrareis um gigante deitado:
Santa Cruz, hoje o Brasil.

Mas um dia o gigante despertou (ooaahhh!).
Deixou de ser gigante adormecido.
E dele um anão se levantou.
Era um país subdesenvolvido
Subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido (bis)

E passado o período colonial,
O país passou a ser um bom quintal.
E depois de dada a conta a Portugal
Instalou-se o latifúndio nacional .. (Ai)
Subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido.

Então o bravo brasileiro (iehéé),
Em perigos e guerras esforçados (iehéé),
Mais que prometia a força humana
Plantou couve, colheu banana.
Bravo esforço do povo brasileiro
Mandou vir capital lá do estrangeiro.
Subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido.

As nações do mundo para cá mandaram
Seus capitais tão desinteressados.
As nações coitadas só queriam ajudar, não é?
Aquela ilha velha não roubou ninguém,
País de poucas terras só nos fez um bem
Um Big Ben
Um big ben , bom, bem, bom
Nos deu luz (ah)
Tirou ouro (oh)
Nos deu trem (ah)
Mas levou o nosso tesouro
Subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido.

Mas data houve em que se acabaram os tempos duros e sofridos
Porque um dia aqui chegaram os capitais dos países amigos.
País amigo, desenvolvido,
País amigo, país amigo,
Amigo do subdesenvolvido
País amigo, país amigo.
E os nossos amigos americanos
Com muita fé, com muita fé,
Nos deram dinheiro e nos plantamos
Só café, só café.
É uma terra em que se plantando tudo dá.
Pode-se plantar tudo que quiser
Mas eles resolveram que nos devíamos plantar
Só café, só café

Bento que bento o frade, frade.
Na boca do forno, forno.
Tirai um bolo, bolo
Fareis tudo que seu mestre mandar?
Faremos todos, faremos todos, faremos todos.
Começaram a nos vender e nos comprar.
Comprar borracha, vender pneu.
Comprar minério, vender navio.
Pra nossa vela, vender pavio.
Só mandaram o que sobrou de lá:
Matéria plástica, que entusiástica,
Que coisa elástica, que coisa drástica,
Rock balada, filme de mocinho,
Ar refrigerado e chiclete de bola (pop)
E coca cola.
Subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido, subdesenvolvido.

O povo brasileiro tem personalidade.
Não se impressiona com facilidade
Embora pense como americano
"Uuuuuuu, I'm going to kill that indian before he kills me (pinim...)
Embora dance como americano
Ta-ta-ta-ta, ta-ta-ta-ta
Embora cante como americano
Eh boi, lá, lá, lá,
Eh roçado bão, lá, lá, lá,
O melhor do meu sertão, lá, lá, lá
Comeram o boi.

O povo brasileiro, embora pense, cante e dance como americano
Não come como americano,
Não bebe como americano,
Vive menos, sofre mais
Isso é muito importante
Muito mais do que importante
Pois difere o brasileiro dos demais
Personalidade, personalidade, personalidade sem igual,
Porém,
Subdesenvolvida, subdesenvolvida,
Essa é que é a vida nacional.

A música, assim como a peça, foi proibida pela censura após o golpe de 1964. A letra acima expressa o projeto cepecista de buscar questionar o passado de submissão do país face aos interesses e costumes estrangeiros. Este objetivo era abrangente, de forma que se procurava questionar também a herança cultural da música popular brasileira, ainda escrita com letras minúsculas.
Arnaldo Contier reconhece na mudança de tom de Lyra e de outros artistas uma influência das re-leituras sobre uma possível revolução social no Brasil ou sobre o surgimento de uma determinada fase ou etapa da História, conforme o marxismo-leninismo. Citando como exemplo outros bossa-novistas, Nara Leão, Edu Lobo e Sérgio Ricardo são apontados por Contier como alguns dos cantores que se inspiraram em idéias divulgadas pelo CPC. Mas a lista certamente é bem mais extensa se olharmos para o período de consolidação das canções de protesto em fins dos anos 60. Sérgio Ricardo, um dos pioneiros da canção socialmente engajada, assumiu papel de líder logo que entrou para o CPC. É ele que, tendo protagonizado a memorável quebra enfurecida do próprio violão sob vaias durante o Festival da Record, apresenta em seu relato um aspecto que abre espaço para algumas discussões sobre os limites do projeto cepecista de aproximação entre artista e
povo:
“Agora, o que não se podia impedir, nem em mim, nem no Carlos Lyra, era uma formação musical harmônica e melódica que a gente tinha adquirido com a bossa nova e até emprestado para a bossa nova. A nossa evolução musical coloria um pouco o imediatismo de certas músicas que assim deixavam de ser panfletárias. Dessa forma, dávamos uma grandeza maior às composições do CPC.”
Considere-se que na “arte popular revolucionária” o artista e o intelectual deveriam assumir um compromisso de “clareza com seu público”, não significando uma “negligência formal” (HOLLANDA, 1980, p. 19). Em “Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960/70)” Hollanda ressalta que a receita da necessidade de “um laborioso esforço de adestramento à sintaxe das massas” deixa patente as diferenças de classe e de linguagem que separavam intelectual e povo. Sérgio Ricardo se refere justamente à incapacidade de driblar as diferenças correspondentes entre ele e seu público através de uma formação musical harmônica e melódica diferente daquela adquirida com a Bossa Nova. De acordo com Napolitano , os termos do campo musical engajado – estética simplória, conteudista, comunicativa – não foram bem assimilados na música popular brasileira, já marcada pelas novas exigências da Bossa Nova (NAPOLITANO: 2001).
Menos que qualquer outra, a música da “arte popular revolucionária” não era só feita de harmonia e melodia, mas, sobretudo de letras. E estas refletiam o sucesso da mobilização para garantir a posse do presidente João Goulart, o decorrente estímulo à participação política e a busca de um novo patamar de conscientização popular através da cultura. Para tanto, no projeto cepecista, tal como na peça “A mais valia vai acabar...”, encenada em 1960, o drama e a emoção davam lugar ao humor e ao didatismo-conscientizador. Além disso, uma questão latente entre intelectuais e artistas da época era a escolha do público a ser atingido.
O nacional e o popular já vinham conquistando espaço na cultura desde os anos 30. Por isso, segundo Contier, muitos compositores privilegiaram o samba de morro ou da Vila Isabel como a representação da autêntica música brasileira. A batida tradicional do samba já era notavelmente identificada com a representação de uma verdade histórica, em oposição às formas e ritmos estrangeiros ou antinacionais, como o jazz, o bolero, o tango argentino. Porém, numa sociedade capitalista baseada no mercado livre, a importação de músicas estrangeiras sempre harmonizou-se com todos os programas intervencionistas ou nacional-populistas desde o governo Vargas (1930-1945; 1951-1954) até Jango ou pós-64.
Portanto, a criação de um projeto nacional e popular na canção de protesto incidiu numa invasão de novos espaços, buscando-se desconstruir um passado internacionalista e alienante. Nesse sentido, durante os anos 60, Edu Lobo e Carlos Lyra, entre dezenas de compositores envolvidos com o projeto cepecista, passaram a escrever músicas representativas dos novos lugares da História: o morro e o sertão. Surgiam também novos personagens, os excluídos sociais, tanto do meio rural quanto do meio urbano:
“As músicas escritas por Edu Lobo e Carlos Lyra refletiram, de um lado, algumas dimensões político-estéticas de uma memória coletiva construída pela esquerda durante os anos 60, centrada nos temas sobre o morro e o sertão, como verdades inquestionáveis, sob o ponto de vista de uma determinada leitura sobre a História do Brasil; e, de outro, alguns traços técnico-estéticos já consolidados pelos compositores eruditos, tais como Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez e Francisco Mignone. E, influenciados por uma determinada interpretação do tema construído pelos cepecistas sobre a Revolução Russa de 1917 e a Revolução Burguesa e Francesa de 1789, esses compositores construíram, consciente ou inconscientemente, músicas representativas de duas frações da classe oprimida: o campesinato e o proletariado urbano.” (CONTIER, 1998.)
Sérgio Ricardo recorda como o projeto cepecista contribuiu para um primeiro movimento de inserção da região nordeste no cenário da música popular brasileira:
“O Nordeste, por exemplo, era riquíssimo em formas musicais, era esquecido, não se falava nele; tinha-se até complexo desse lado brasileiro. O carioca rejeitava muito essa coisa de baião. Até que a gente começou a mostrar que não era bem assim. Então começamos a trazer elementos bons de lá para mostrarmos as variadas formas de música do Nordeste, assim como quaisquer músicas do campo de outras regiões. Isso abriu um leque de criação em torno de uma nova coisa brasileira, musical, o que se distanciou demais da bossa nova.”
Como exemplo das músicas criadas por Edu Lobo e Carlos Lyra que se inserem de alguma forma no contexto do projeto de cepecista de arte popular revolucionária Contier cita Ponteio, Repente, Toada, Upa Neguinho, Vento Bravo, Borandá, No cordão da saideira, Candeias, Arrastão, Canção da Terra, Reza, Dos Navegantes, Veleiro, Canudos, de autoria do Edu Lobo e, de Carlos Lyra, Choro de breque, Entrudo, Influência do Jazz, Feio não é bonito, Marcha da 4a feira de Cinzas. Contudo, é interessante notar que, tendo sido composta por Carlos Lyra e Vinicius de Moraes no ano de 1962, portanto antes do golpe civil-militar, a Marcha da 4a feira de Cinzas assumiria outro sentido em dezembro de 1964, quando foi selecionada por Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa para ser apresentada no Show Opinião.

Marcha da 4a feira de Cinzas
Carlos Lyra e Vinicius de Moraes
Acabou nosso carnaval, ninguém, ouve cantar canções
Ninguém passa mais brincando feliz
E nos corações saudades e cinzas foi o que restou
Pelas ruas o que se vê é uma gente que nem se vê
Que nem se sorri, se beija e se abraça
E sai caminhando, dançando e cantando cantigas de amor
E no entanto é preciso cantar
Mais que nunca é preciso cantar
É preciso cantar e alegrar a cidade
A tristeza que a gente tem qualquer dia vai se acabar
Todos vão sorrir, voltou a esperança
É o povo que dança, contente da vida feliz a cantar
Porque são tão tantas coisas azuis, há tão grandes promessas de luz
Tanto amor para amar que a gente nem sabe
Quem me dera viver pra ver e brincar outros carnavais
Que marchas tão lindas
E o povo cantando seu canto de paz

A música originalmente se refere ao fim do carnaval e reflete o otimismo e a esperança numa mudança histórica característicos do início dos anos 60. Com o golpe civil-militar ganha nova conotação, inserindo-se oportunamente num contexto de resistência.
“Na Marcha..., Carlos Lyra refutou, em parte, a tese de Carlos Estevan Martins a respeito da negação da estética e da positividade do conteúdo na elaboração de um texto cultural (teatro, poesia, música). Fundamentalmente, no campo musical, compositores de talento e fortemente marcados pelas escutas dos impressionistas, dos cantores de jazz, jamais poderiam simplificar suas melodias ou pesquisas timbrísticas na busca de um som mais simples ou de um texto didático e esquemático a ser decodificado com facilidade pelo povo. Em síntese, Carlos Lyra e Edu Lobo não podem ser rotulados como autores de canções didático-políticas, sem nenhum diálogo com as tendências técnico-estéticas mais significativas do século XX.” (CONTIER , 1998)
As teses defendidas por Carlos Estevan Martins no seu Manifesto sobre a arte popular revolucionária (1962) postulavam o engajamento dos artistas e intelectuais brasileiros. Estes deveriam assumir uma atitude revolucionária conseqüente. Qualquer outra opção que não colocasse a arte como instrumento da tomada de poder era rejeitada pelo CPC. Fora dessa realidade estaria o alienado e o inconformista, ambos descartados do modelo de artista ou intelectual cepecista. O primeiro por não se dar conta de que a arte dentro do conjunto global dos fatos humanos não passava de um conjunto de elementos constitutivos da superestrutura social. O segundo por apresentar uma “insatisfação inconseqüente”, já que o artista ou intelectual apenas adotava uma atitude negativa, dizendo estar ao lado do povo, mas não reagindo como parte integrante deste. Anos mais tarde os adeptos das canções de protesto rivalizariam com os ditos alienados chegando a haver um patrulhamento estético-ideológico da arte alheia.

O show é ter opinião (Considerações finais)
Nas palavras de Arnaldo Jabour, “doideira paternalista” ou “a doideira conscientizante que se apossou dos artistas” com o surgimento do CPC deixou vestígios ou mesmo marcas no processo que iria consagrar a sigla MPB. A referência irônica e crítica parte de um ex-cepecista. Carlos Lyra por sua vez reconhece que a Bossa Nova, por exemplo, nunca mais foi a mesma depois do CPC.
“Antes, ela era a Bossa Nova do amor, do sorriso e da flor. Depois, passou a criticar a influência do jazz e também fazer uma análise das coisas que estavam influenciando a cultura brasileira naquele momento. Vem o tempo do “morro não tem vez”.
E de fato com a tomada do poder pelos militares, o morro (aqui numa referência ao povo no sentido mais geral, referente à população não “culta”) é jogado para escanteio. Segundo as “Impressões de viagem” de Heloísa Buarque de Hollanda “se a circulação do ideário e das manifestações culturais patrocinadas pela esquerda não é impedida, ela será, todavia bloqueada em seu acesso às classes populares” (HOLLANDA, 1980, p. 30). A autora cita Roberto Schwarz, segundo o qual com a repressão que atinge em cheio a intelectualidade socialista em 1964, o contato com os operários, marinheiros e soldados foi interrompido, sendo cortadas as pontes entre o movimento cultural e as massas. Ainda segundo Schwarz, a circulação do ideário esquerdista, não foi impedida pelo governo Castelo Branco e, embora em área restrita, floresceu extraordinariamente até que em 1968 surgem as condições para divulgação da canção. O que, ironicamente, acaba ocorrendo, segundo Contier, por meio da indústria do disco e da televisão, que “seduzem” o “artista-artesão romanticamente envolvido com os matizes marxistas”.
Nas palavras de Marcos Napolitano, com o golpe de 1964, “o pacto classista reduz seu espectro social (expurgando a “burguesia traidora”), e a crença na emoção como base de uma construção progressiva da consciência sobre um abalo” (NAPOLITANO, Marcos: 2001). Além disso, o autor destaca o surgimento do Opinião e de uma relação com o público que incorpora a busca da “resistência-catarse”, sem negar num primeiro momento o binônio da “emoção-consciência”. “O povo do palco era o mesmo povo da platéia” (NAPOLITANO, apud MOSTAÇO, 1982: p.77).
No palco do Opinião, o paternalismo de tentar elevar o gosto musical do povo ou transmitir uma consciência de si e uma consciência de classe já não era o objetivo. Com o sucesso do Show Opinião, figuras desconhecidas do grande público transformaram-se em mitos de fortes colorações cepecistas. João do Valle representando o sertanejo nordestino, Zé Ketti, o sambista pobre dos morros e Nara Leão [posteriormente substituída por Maria Bathânia], ex-musa da Bossa Nova, agora, assumindo papel de militante, explicitando, na prática, o programa do CPC sobre a possibilidade de agentes sociais da classe média urbana abraçarem a causa das esquerdas. Hollanda ressalta que a representação do contato classe média/povo que passa a realizar-se em espetáculo “já começa a ser questionada e vista como incerta” (HOLLANDA, 1980, p. 34). A VOZ que fala com Nara Leão durante o espetáculo adverte: “Não vai dar certo, Nara. Você vai perder o público de Copacabana, lavrador não vai entender. (...)”.
Já em 1966, longe da utopia conscientizadora do início da década, Caetano Veloso diria: “Sei que a arte que eu faço agora não pode pertencer verdadeiramente ao povo. Sei também que a Arte não salva nada nem ninguém, mas que é uma de nossas faces”. Em “Cultura e participação política nos anos 60”, os autores afirmam que a “distância dos tropicalistas em relação ao projeto revolucionário pré-1964 estará implicada com uma revisão do nacionalismo e da idealização populista da “pureza” popular, em favor da idéia de uma cultura capaz de elaborar criticamente a diversidade das informações, incluindo as de origem internacional.
Independente das valorações que possamos fazer do projeto cepecista à luz implacável do presente, é preciso reforçar a importância do contexto sócio-político que alimentava aquilo que só hoje podemos qualificar como ‘utopias’. O fato é que ao longo do debate estético-ideológico que originou a sigla “MPB”, os CPCs cumpriram o papel de forçar negociações e conflitos importantes, de maneira que a indústria fonográfica e televisiva, o partido comunista, a imprensa, e o campo intelectual como um todo concorressem com e para formação da dita “instituição sociocultural”.
Por fim, deixemos sempre entreaberta a janela do passado para o caso de precisarmos rever ou ratificar algumas concepções, ainda as mais sólidas.


Referências bibliográficas
CONTIER, Arnaldo Daraya. Edu Lobo e Carlos Lyra: O Nacional e o Popular na Canção de Protesto (Os Anos 60). Rev. bras. Hist. [online]. 1998, vol. 18, no. 35, pp. 13-52. Disponível em:
HOLLANDA, Heloísa Buarque. Impressões de viagem: cpc, vanguarda e desbunde (1960/70). Editora Rocco: Rio de Janeiro, 1980.
__________________________ & GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. Editora Brasiliense: São Paulo, 1984.
NAPOLITANO, Marcos. A arte engajada e seus públicos (1965/1968). Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.28, 2001. Disponível em:
__________________________ O conceito de “MPB” nos anos 60. In: História: Questões e Debates, Editora da UFPR: Curitiba, n. 31, p. 11-30, 1999.
Outros sites consultados:
http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/312.pdf
http://www.carloslyra.com/
http://www.faperj.br/redir.php?id=314