segunda-feira, 28 de maio de 2007

Hip-Hop: A Arte da Periferia Ganhando o Mundo.

Hip-Hop: A arte da periferia ganhando o mundo.

Felipe Claudino e Mariana Gomes Caetano

Inicialmente apresentaremos um pouco da história do Hip-Hop, de seus antecedentes, de como surgiu nos EUA e sua chegada no Brasil. Para isso será necessário voltarmos à década de 60. Nesta época, os EUA viviam uma grande efervescência. Cabe destacar a luta dos negros por seus direitos, mesclada em movimentos pacíficos (Martin Luther King, com a “Marcha para Washington”) e outros mais violentos (Malcom X e os Panteras Negras). Concomitantemente, na Jamaica ocorriam os “Sound Systems”, sons colocados nos bailes das áreas periféricas para animar as pessoas. Havia os “Toasters” (uma espécie de MC), que cantavam os assuntos da região, como violência, drogas e sexo.
Ainda nos anos 60, ocorre uma intensa migração jamaicana para os EUA, levando consigo as características musicais do país. O DJ Kool Herc, acaba por implantar esse modelo do “Sound Systems” nos bailes da periferia de Nova Iorque. Neste momento surgem os MC’s (Mestres de Cerimônia) e os Rappers, que cantam a realidade dos negros norte-americanos, baseando-se muito no discurso dos Panteras Negras. A partir dessa união entre sons e discurso surge nos EUA o RAP (Rythm and Poetry – Ritmo e Poesia) ganhando as ruas dos guetos norte-americanos.
Ainda neste contexto, vem da América Central, o Brake, dança influenciada nos golpes de artes marciais, em especial o Kung Fu, com movimentos robóticos. Surge também o Graffiti, tentando aproximar o movimento das artes e afastar o aspecto violento que se tinha com as gangues em NY, pois estas usavam o TAG nos muros de cidade. Em 1968 é criado o movimento Hip-Hop pelas equipes dos bailes, com o objetivo de apaziguar as brigas entre as gangues. O Hip (quadril) une-se ao Hop (saltar), formando o Hip-Hop (“saltar com o quadril” – fazendo referência ao brake). A cultura Hip Hop é composta por quatro frentes: o Brake, Graffiti, DJ e o Rap. O DJ Afrika Bambaata, da Equipe Zulu Nation é conhecido como o fundador do Hip-Hop. O Rap nessa questão aparece como algo curioso, no que diz respeito à mistura de ritmos, como o soul de James Brown e o som eletrônico do Trans-Europe Express. Além da propagação do novo ritmo, o movimento também organizava palestras educativas para diminuir a violência e conscientizar a população de seus direitos, e arrecada fundos para manifestações “pró-negros” como o Anti-Apartheid.
O Hip-Hop chega ao Brasil na década de 70, em SP. Também na área periférica, as mesmas pessoas que já ouviam o soul, passaram a escutar também o Hip-Hop. Os iniciantes deste movimento no país são Nelson Triunfo, Thaíde & DJ Hum e outros, que encontraram na Estação de São Bento seu refúgio. Ali faziam bailes nos fins de semana. Em 1988, aparece o primeiro registro fonográfico do Rap nacional, na coletânea Hip-Hop. Em 1989, o movimento H2O (Movimento Hip-Hop Organizado) promove a organização de movimentos culturais e oficinas para jovens aprenderem mais sobre o movimento.
Nos anos 90, o Hip-Hop brasileiro, agrupa de certa forma o local e o global, unindo a cultura Hip-Hop norte-americana global, com o aspecto nacional, mostrando um Brasil desigual, com pouca mobilidade social, quebrando o paradigma de que no país há sempre um “jeitinho” de escapar-se dos problemas. A cultura então se expande, alcançando sucesso, abrindo espaço para grupos e rappers como Racionais MC´s, Xis, Pavilhão 9, MV Bill, RZO, Gabriel o Pensador, Afro-Reggae, 509 E, e muitos outros. Atualmente o Hip-Hop já possui uma boa penetração, mas ainda permanecem alguns preconceitos em relação a ele.

1. O SUCESSO DO RAP NO BRASIL.
Faremos referência a alguns dos grupos e rappers que possuem maior repercussão no mundo do hip-hop brasileiro. O objetivo aqui não é criar algum juízo de valor em relação a um grupo seleto de rappers ou estabelecer uma hierarquia – mesmo que alguns grupos possam ajudar a legitimar outros. Será apenas exposta uma breve lista de artistas que se destacaram frente à mídia e à sociedade, fazendo de seu estilo musical uma forma de comunicação com a população.

XIS: Marcelo Santos, posteriormente conhecido como Xis, viveu boa parte de sua vida na zona leste de SP, em Itaquera. Sua primeira apresentação foi em um festival na escola, em 1986. Desde dessa época Xis já possuía uma capacidade de ligar rimas e a melodia do rap, obtendo grande influência do grupo Public Enemy.
Antes de ser conhecido como Xis, o cantor possuía o codinome Under, que usou até o início da década de 90. Em 1992, o artista muda novamente o seu “nick” de Under para X Ato, juntamente entrando para o Grupo D.M.N. Neste grupo, Xis se lança de vez para o rap nacional com músicas como “Aformaoriginal” e “Como pode estar tudo bem”. Na segunda metade da década de 90, Xis começa sua carreira solo, com o rap “De Esquina” como 1º registro musical. Cabe lembrar que nessa época, suas músicas não possuíam um vínculo muito político, com letras mais amorosas e com tom de humor.
A partir de 1999, o cantor muda novamente de codinome, de X Ato para finalmente Xis. Junto com a mudança no nome, a carreira também se altera, ganhando mais notoriedade. Xis funda com o dj KL Jay a gravadora 4P (Poder Para o Povo Preto) e lança o primeiro disco, Seja como for que teve como grande sucesso a música “Us Mano, as Mina”, ganhando o VMB (Vídeo Music [Awards] Brasil) em 2000 pela MTV. Outros raps desse cd, como “A Fuga” e “Bem Pior” também se tornaram sucesso nas rádios. A postura agora era mais politizada, com letras mais contundentes e que retratavam os problemas vividos nas periferias paulistas.
Em 2001, Xis possui maior ligação com a grande indústria fonográfica, lançando o seu CD Fortificando a desobediência pela Warner. Com músicas como “Chapa o coco” e “Fortificando a desobediência” – gravada com rappers cubanos – Xis emplaca mais um grande sucesso em sua carreira. Posteriormente, o cantor começa a utilizar o rap mesclado com outros gêneros musicais, como por exemplo, a música “De Esquina” gravada com Cássia Eller e “Cirande em Frente” com o grupo Monobloco.
Um fato que merece uma discussão é a relação direta entre o rapper Xis e a mídia. Em 2002, o artista é convidado para participar do reality show “A Casa dos Artistas”. Com o programa comandado por Silvio Santos, A Casa dos Artistas mostra uma nova maneira de se ver o artista, mostrando suas intimidades, a relação com outros artistas, etc., porém em uma casa vigiada 24h por dias por câmeras. A entrada de Xis na “Casa” foi algo bastante polêmico entre o mundo do hip-hop e o que eles pregavam. Muitas pessoas, principalmente rappers achavam que a postura assumida por Xis ao entrar neste programa era errada, pois ele estaria “traindo o movimento”, já que a sua música engajada politicamente criticava todo o sistema capitalista que gerava desigualdade e péssimas condições de vida na periferia.
Por outro lado, há de se pensar que por ser o hip-hop um movimento das camadas populares da sociedade, a exposição em veículos de mídia poderia ajudar na disseminação do movimento, mostrando suas características, possibilitando um esclarecimento que tanto falta às pessoas sobre o hip-hop, na tentativa de superar certos preconceitos. Sobre este assunto, interessante lermos parte de uma entrevista feita como o rapper Xis: .

Seabra - Você tem uma relação bem consciente com a mídia como um todo, não?
Xis - Eu consigo me entender, mas quando eu entrar no Gafieiras e ver o que foi escrito, vou falar, “Porra, ou entenderam o que eu falei ou não!”. Talvez eu leia e pense, “Porra, é isso mesmo, os caras entenderam”. Já vi muita merda ser escrita sobre o Xis. Não fico vendo coisa que eu faço. Tenho umas 40 fitas da Casa dos Artistas em casa que o meu pai gravou e até hoje não assisti nada.

Seabra - O curioso é que, quando você foi pra Casa, o pessoal bateu, “Pô, o cara está se vendendo”, mas você tem um discurso bastante consciente sobre a mídia e consegue dialogar com ela.
Xis - As pessoas que eu admiro - Malcom X, Spike Lee, figuras da cultura negra - sempre dialogaram muito com a mídia, véio.

Fernando - Usaram a mídia a favor deles.
Xis - É lógico. Porque é a única maneira de você passar a informação pra muita gente, entendeu, véio? O site de vocês, agora, está sendo acessado. O meu (site) está sendo acessado. É uma maneira de comunicação. A gente, no rap, sempre reclamou disso, da falta de espaço na TV, da falta de espaço em jornal, nas fotografias... Nem tem como eu ficar brigando com isso e quando alguém me chamar eu não vou? Cê é louco, mano? Eu não sou louco, mano! Sabe o que é isso, do Silvio Santos ligar pra sua casa e falar assim, “Ô, cola aí!” Nunca, véio! A qualquer hora, se o Silvio Santos me ligar, “Chega aí!” Eu, “Vâmo aí! Qual é o esquema?”. [risos] Eu vou.


GABRIEL, O PENSADOR: Gabriel possui diversos atributos que distinguem do “rapper clássico”, como o fato de se branco e filho de família de classe média alta. Quando começou a cantar, Gabriel foi exaltado e discriminado por sua condição social e também por sua nova forma de fazer rap. Enquanto boa parte dos raps explicitava de forma engajada a vida das comunidades carentes e seus problemas, Gabriel, O Pensador tratava de expor a realidade em qual vivia, mostrando principalmente a vida da classe média alta, de forma bem sarcástica e de certa forma contundente.
Com a gravação da música “Tô feliz, matei o presidente” em 1992, expunha a sua indignação com o presidente Collor. Com o lançamento do seu 1º CD intitulado Gabriel, O Pensador as músicas “Retrato de um playboy” e “Lôrabúrra”, bastante contestadoras sobre a classe média, se tornaram sucessos entre o público jovem no país.
Cabe fazer uma ressalva sobre a música “Lôrabúrra”, que trouxe grande polêmica no cenário social. O modo como ela é feita, mostrou para alguns que Gabriel poderia estar sendo preconceituoso em relação às loiras, criando um estereótipo. Esse estereótipo, acabou de certa forma sendo incorporado na sociedade, gerando às vezes até processos judiciais por preconceito contra as loiras. Para entender melhor do que estamos falando, mostraremos a letra da música, e vocês poderão tirar as conclusões que desejarem.


LÔRABÚRRA
Gabriel, O Pensador

Existem mulheres que são uma beleza
Mas quando abrem a boca
Hmm que tristeza!
Não não é o seu hálito que apodrece o ar
O problema é o que elas falam que não dá pra agüentar
Nada na cabeça
Personalidade fraca
Tem a feminilidade e a sensualidade de uma vaca
Produzidas com roupinhas da estação
Que viram no anúncio da televisão
Milhões de pessoas transitam pelas ruas mas conhecemos facilmente esse tipo de perua
Bundinha empinada pra mostrar que é bonita
E a cabeça parafinada pra ficar igual paquita

Lôrabúrra!

Elas estão em toda parte do meu Rio de Janeiro
E às vezes me interrogo se elas tão no mundo inteiro
À procura de carros
À procura de dinheiro
O lugar dessas cadelas era mesmo no puteiro
Só se preocupam em chamar a atenção
Não pelas idéias mas pelo burrão
Não pensam em nada
Só querem badalar
Estar na moda tirar onda beber e fumar
Cadelinhas de boate ou ratinhas de praia
Apenas os otários aturam a sua laia
E enquanto o playboy te dá dinheiro e atenção
Eu só saio com você se for pra ser o Ricardão

Lôrabúrra!

Não eu não sou machista
Exigente talvez
Mas eu quero mulheres inteligentes
Não vocês
Vocês são o mais puro retrato da falsidade
Desculpa amor
Mas eu prefiro mulher de verdade
Você é medíocre e ainda sim orgulhosa
É mole?
Não tá com nada e tá prosa
E o seu jeito forçado de falar é deprimente
Já entendi seu problema
Vocês tão muito carentes
Mas eu só vou te usar
Você não é nada pra mim
(Hmm meu amor
Foi bom pra você?)
...Ah deixa eu dormir
Pra que dar atenção pra quem não sabe conversar?
Pra falar sobre o tempo ou sobre como estava o mar? Não
Eu prefiro dormir
Sai daqui
Eu já fui bem claro mas vou repetir
E pra voce me entender vou ser ate mais direto:
Lôrabúrra, cê não passa de mulher-objeto

Lôrabúrra!

Escravas da moda vocês são todas iguais
Cabelos, sorrisos e gestos artificiais

idéias banais e como dizem os Racionais:
(Mulheres vulgares
Uma noite e nada mais)
Lôrabúrra você e vulgar sim
Seus valores são deturpados você é leviana
Pensa que está com tudo mas se engana em sua frágil cabecinha de porcelana
A sua filosofia é ser bonita e gostosa
Fora disso é uma sebosa tapada e preconceituosa
Seus lindos peitos não merecem respeito
Marionetes alienadas vocês não têm jeito
Eu não sou agressivo
Contundente talvez
O Pensador dá valor às mulheres
Mas não vocês
Vocês são o mais puro retrato da falsidade
Desculpa amor
Mas eu prefiro mulher de verdade

Lôrabúrra!

É o problema não tá no cabelo
Tá na cabeca
Não se esqueça
Nem todas são sócias da farmácia (Lorácia)
Tem muita Lôrabúrra de cabelo preto e castanho por aí
É... Lôrabúrra morena, ruiva, preta...
Lôrabúrra careca
E tem a Lôrabúrra natural também (Loraça belzebúrra)
Cada Lôrabúrra é de um jeito mas todas sao iguais
Cê tá me entendendo?
(Eu gosto é de mulher)

Lôrabúrra!


Após o sucesso do 1º CD, Gabriel lança em pouco tempo outro CD, intitulado Ainda é só o começo, prosseguindo com seu estilo bem humorado e sem expor de maneira agressiva as condições precárias que parte da população vivia. O “ataque” neste disco às instituições burguesas vai para educação, política, religião, entre outros. As músicas “Estudo Errado” e “FDP³ (FDP ao cubo)” mostram bem como o cantor expressava sua opinião frente aos problemas sociais.
Gabriel, O Pensador, vai cada vez ganhando espaço no cenário musical brasileiro através do hip-hop, com um estilo diferente do norte-americano e paulista, com um “jeito carioca de ser”, mostrando que a cultura pode ser reinterpretada quando se altera o contexto. Outro grande disco que fez sucesso entre o público foi o CD Quebra-Cabeça, chegando a marca de mais de um milhão de cópias vendidas. Os raps “2345meia78” e “Cachimbo da Paz” ocuparam um grande espaço mais uma vez entre o público mais jovem. Após esse disco, o artista deixa de lado um pouco o ritmo contundente de suas músicas e passa para um lado mais intimista, mas sem deixar de questionar a sociedade em que vive. Isto já é visto no disco Nádegas a Declarar (1999), que tinha como temática principal a “bundalização da mulher” promovida pela mídia. Nos próximos CD’s, Gabriel já não possui a grande exposição do início da carreira, mas ainda continua gravando discos, como Seja você mesmo, mas não seja sempre o mesmo (2001), MTV ao vivo – Gabriel, O Pensador e Cavaleiro Andante (2005)

MV BILL: Nascido e criado na Cidade de Deus (CDD), favela carioca, Alex Pereira Barbosa, o MV Bill, encontrou através do hip-hop a forma de retratar o tráfico, a violência e as condições ruins de vida pela qual a comunidade da CDD e outras passam. MV Bill já começa a inovar no seu próprio codinome, pois ao invés de colocar a sigla MC (mestre de cerimônia) opta por MV (mensageiro da verdade). O rapper inicia sua carreira no grupo Geração Futuro, posteriormente grava sua primeira música solo intitulada “CDD Mandando Fechado”, despontando para a carreira de cantor de hip-hop.
O seu 1º CD de nome Traficando Informação é como um choque para quem o escuta. A forma às vezes agressiva como são expostas as músicas, as gírias e descrições da favela, transmitem uma visão bem realista do local. O rap “Soldado do Morro” foi o sucesso do disco juntamente com “A Noite” que retoma este estilo carioca, falando do gosto pela madrugada, pela “night”. O cantor causou polêmica no Free Jazz Festival em 1999, quando apareceu cantando “Soldado do Morro” sem camisa e com uma pistola na cintura. Muitos o criticaram, com o argumento de que MV estaria fazendo apologia à violência, porém outros o defenderam, dizendo que ele só queria expor de forma realista a vida na comunidade. O ato gerou opiniões contrárias por um tempo.
Após este período polêmico na carreira de MV Bill, o rapper lança o seu segundo CD, Declaração de Guerra em 2002, com a música “Só Deus pode me julgar” como uma resposta à sociedade e à mídia que tanto o haviam criticado. O curioso nesta mesma música é a anexação de elementos eruditos, como uma orquestra, por exemplo. O CD também possui referências à MPB, com melodias de músicas conhecidas, como “Samurai” do Djavan.
Em seu 3º CD, Falcão: O Bagulho é Doido, o artista continua com sua forma de fazer rap, mesclando o cotidiano carioca e a denúncia sobre as condições das comunidades carentes. Sobre essas comunidades, em especial a CDD, vale lembrar que MV Bill foi um dos fundadores da ONG CUFA (Central Única das Favelas), a qual organiza movimentos de conscientização sobre o problema das favelas, oferece oportunidade aos jovens mostrarem sua arte e promove eventos, como o Festival Hutúz, que reuniu festival de rap, seminários, basquete de rua, batalha de rappers, etc. Além dessa ONG, atitudes mais chocantes, como a amostra do documentário “Falcão: meninos do tráfico” em horário nobre na Globo serviram para o cantor expor a condição das áreas periféricas, que muitos tentam fingir que não as vêem.

RACIONAIS MC’S: O grupo formado por Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e o dj KL Jay, se tornou sem dúvida um dos maiores grupos do rap do Brasil, servindo como um paradigma para rappers iniciantes, pois sua forma de retratar a vida nas periferias de SP, principalmente na Zona Sul de SP, é feita de forma contundente e engajada politicamente. Sua 1ª gravação foi na coletânea Consciência Black (1988), e em 1991 o grupo abre o show do famoso grupo de rap Public Enemy. O 1º CD vem em 1992, denominado Holocausto Urbano aparece já expondo a proposta do grupo, fazer um rap engajado que denuncie todas as mazelas que o sistema capitalista promove aos mais pobres. Músicas como “Pânico na Zona Sul”, “Tempos Difíceis” e “Hey Boy” compõem este primeiro disco.
Apesar de em 1992 os Racionais lançarem outro CD, Escolha seu caminho, a explosão de sucesso do grupo veio com seu disco Sobrevivendo no Inferno de 1997. Sucessos como “Diário de um Detento”, “Capítulo 4, Versículo 3” e “Fórmula Mágica da Paz”, fizeram os rappers chegarem a marca de 500 mil cópias vendidas. Neste CD utiliza-se muito o “rap messiânico” e tem-se uma linguagem com diversas gírias e expressões típicas da periferia paulista – dificultando às vezes o entendimento do rap – como “bombeta” (boné), “lupa” (óculos), “gambé” (policial) e outras. No próprio 1997, os Racionais MC’s lança o disco “Raio-X do Brasil”, mantendo sua rap engajado politicamente.
Em 2002, os rappers voltam a gravar um CD, depois de certo tempo sem gravarem. O disco de nome Nada como um dia após o outro dia, foi mais uma explosão entre o público, gerando mais uma onda de sucesso. Há uma volta do rap messiânico nesse caso, principalmente nas músicas “Jesus Chorou” e “Vida Loka parte 2”. Outros sucessos como “Vida Loka parte 1” e “Negro Drama” mostram muito do rap engajado paulista. Além da área musical, os Racionais atuam também no desenvolvimento de projetos sociais, como por exemplo, o Projeto Repensando, Música Negra, e outros.
Certamente algo que destaca este grupo dos demais é a sua posição frente à mídia. Apesar de uma postura dúbia em relação à ela, o grupo consegue um enorme sucesso, atraindo cada vez mais adeptos. A certa rejeição que os rappers possuem contra a “grande mídia” – por exemplo, a Rede Globo – e a consolidada indústria fonográfica parece ser um “suicídio” por vezes, tendo em vista o contexto entre a música brasileira e a indústria cultural. Exibiremos um fragmento que retrata bem este fato:
A Rede Globo ouviu um não. A internacional Sony Music ouviu o mesmo não. Jornalistas ouvem não todos os dias. Fabricantes de roupa, produtores de show, artistas que os querem como parceiros. Não adianta oferecer o céu do show biz aos Racionais MC's que eles não querem.

2. RAP NACIONAL E MPB: INDIGNAÇÃO E PROTESTO.

O Rap se consolida no Brasil na década de 90 com um propósito muito claro: ocupar um lugar na sociedade onde os rappers possam abrir discussões relacionadas à discriminação racial, além dos problemas da sociedade como um todo.
Letras de protesto, com um caráter político-social; uma estética diferente; uma proposta combativa. Tudo isso nos remete a um movimento musical bastante conhecido: a MPB dos anos 60. A MPB - Música de Protesto, ou Canção Engajada, como também ficou conhecida - consagrada pelos Festivais de Música (principalmente os da TV Record), teve como nomes de destaque: Chico Buarque ¹, Geraldo Vandré, Elis Regina, Tom Zé, Caetano Veloso, Gilberto Gil (os dois últimos também foram peças-chave do Movimento Tropicalista, ou Tropicália). Muitas canções tornaram-se hinos, marcaram época e permanecem até hoje. Grande parte delas se insere no contexto da Ditadura Militar, conseqüentemente, os principais temas são a liberdade, o poder de luta das "massas", espécies de convocações para uma discussão politizada e uma atuação efetiva no processo de redemocratização do país reprimido pelos militares. Marcelo Ridenti ², em seu texto Revolução Brasileira na Canção Popular enfatiza essa questão ao dizer que "as manifestações artísticas nos anos 60 tinham em comum o impulso para o debate, a luta e a ação criativa".
Este caráter contestador presente nas letras - embora o enfoque seja outro – é algo muito marcante tanto na MPB 60 – chamarei assim a Música Popular Brasileira dos anos 60 – quanto no Rap 90 – Rap Brasil dos anos 90; no caso do Rap 90, uma "herança" do Hip Hop americano, nascido e aprimorado nos guetos de Nova Iorque, que sofriam ainda com resquícios do recente processo de segregação racial nos Estados Unidos e com as péssimas condições de vida das camadas mais baixas da população, em sua maioria negros. No entanto, embora as semelhanças entre o rap americano e o brasileiro sejam muitas (enfatizo aqui o Rap paulista), são movimentos diferentes. Os próprios militantes (é assim que gostam de ser chamados os membros do movimento Hip Hop no Brasil) evidenciam essas diferenças e relatam o rap nacional como mais politizado e crítico em relação ao norte-americano. Além da música, avançando mais para o Hip Hop como movimento propriamente dito, podemos observar semelhanças entre o Break que se dança nas periferias brasileiras e a Capoeira. Coincidência? De maneira alguma, influência mesmo, como já observaram, inclusive, os americanos. Essas misturas são motivo de orgulho para os militantes do Hip Hop nacional, visto que demonstram uma valorização cada vez maior dos elementos da cultura brasileira, elementos estes que foram inseridos em um movimento trazido dos Estados Unidos.
Mas voltando às comparações entre MPB e Rap, a melhor maneira de demonstrarmos a proximidade - embora não temporal - entre MPB 60 e Rap 90 (guardadas as devidas proporções) é com exemplos. Por isso, analisaremos abaixo duas composições: uma do Rap 90, e outra da MPB 60.


TEMPOS DIFÍCEIS
Racionais Mc's

Eu vou dizer porque o mundo é assim.
Poderia ser melhor mas ele é tão ruim.
Tempos difíceis, está difícil viver.
Procuramos um motivo vivo, mas ninguém sabe dizer.
Milhões de pessoas boas morrem de fome.
E o culpado, condenado disto é o próprio homem.
O domínio está em mão de poderosos, mentirosos.
Que não querem saber.
Porcos, nos querem todos mortos.
Pessoas trabalham o mês inteiro.
Se cansam, se esgotam, por pouco dinheiro.
Enquanto tantos outros nada trabalham.
Só atrapalham e ainda falam.
Que as coisas melhoraram.
Ao invés de fazerem algo necessário.
Ao contrário, iludem, enganam otários.
Prometem 100%, prometem mentindo, fingindo, traindo.
E na verdade, de nós estão rindo.
Tempos... Tempos difíceis! (4x)

Tanto dinheiro jogado fora.
Sendo gasto por eles em poucas horas.
Tanto dinheiro desperdiçado.
E não pensam no sofrimento de um menor abandonado.
O mundo está cheio, cheio de miséria.
Isto prova que está próximo o fim de mais uma era.
O homem construiu, criou, armas nucleares.
E o aperto de um botão, o mundo irá pelos ares.
Extra, publicam, publicam extra os jornais
Corrupção e violência aumentam mais e mais.
Com quais, sexo e droga se tornaram algo vulgar.
E com isso, vem a AIDS pra com todos liquidar.
A morte, enfim. Vem destruição, causam terrorismo.
E cada vez mais o mundo afunda num abismo.
Tempos... Tempos difíceis! (4x)

Menores carentes se tornam delinquentes.
E ninguém nada faz pelo futuro dessa gente.
A saída é essa vida bandida que levam.
Roubando, matando, morrendo.
Entre si se acabando.
Enquanto homens de poder fingem não ver.
Não querem saber.
Faz o que bem entender.
E assim... aumenta a violência.
Não somos nós os culpados dessa consequência?
Destruíram a natureza e o que puseram em seu lugar
jamais terá igual beleza.
Poluíram o ar e o tornaram impuro.
E o futuro eu pergunto, confuso: "como será?"
Agora em quatro segundos irei dizer um ditado:
"Tudo que se faz de errado aqui mesmo será pago"
O meu nome é Edy Rock, um rapper e não um otário.
Se algo não fizermos, estaremos acabados.
Tempos difíceis!



PANIS ET CIRCENSES
Gilberto Gil e Caetano Veloso

Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
As cinco horas na Avenida Central
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Mandei plantar
Folhas de sonhos no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar

Mas as pessoas da sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

As duas letras tratam do modo de vida burguês, cada uma em seu tempo e de maneiras diferentes, mas com uma temática muito próxima. A primeira com uma linguagem mais direta, descrições mais exatas. A segunda com metáforas muito bem trabalhadas e uma linguagem mais subjetiva.
As semelhanças entre a MPB 60 e o Rap 90 são claras no que se trata de conteúdo político, social, cultural. No entanto, não podemos deixar de salientar algumas diferenças. O rap no Brasil (principalmente nas periferias paulistas), mais uma vez como nos guetos nova iorquinos, lida com questões relacionadas ao preconceito racial, os problemas com a polícia advindos deste preconceito, as relações dentro da prisão e as deficiências do sistema penitenciário brasileiro; no Rio de Janeiro, embora com menor intensidade, as letras tratam dos problemas políticos, corrupção, a relação entre ricos e pobres, como isso se reflete na noite carioca. A MPB cantava a repressão, o desejo e o anseio da juventude pela liberdade e pelo poder de luta, a saudade do amigo que estava no exílio. Além disso, os públicos para os quais se destinam – e aqueles que produzem - são completamente diferentes. A questão é um pouco mais complexa. A MPB pretendia atingir a maior parte possível da população, no entanto, todos sabemos que o "consumidor" da MPB era o jovem de classe média, na maioria das vezes universitário ou com um nível de escolaridade, no mínimo, razoável. Já o rap, que também pretende atingir uma grande parcela da população, obviamente, conta com um público diferenciado, também são jovens, em sua maioria, no entanto, advindos de classes baixas, já que se identificam com as histórias relatadas nas canções. Existem exceções, como no caso dos Racionais Mc's, que já ganharam prêmios na MTV (e não foram receber, o que também é uma forma de protesto) e têm seus discos tocados em carros de luxo dos chamados "mauricinhos".

3. A RELAÇÃO MOVIMENTO HIP HOP E MÍDIA: A REVOLUÇÃO NÃO SERÁ TELEVISIONADA.

Um tema muito ligado a questões descritas até agora é a relação rap – Meios de Comunicação. Em entrevista à Carta Capital ³, o rapper Happin' Hood comenta sobre isso:

Entrevistador - Rappers têm preconceito com a mídia ou estão conseguindo conciliar a questão da fama?
Happin' Hood - Já disseram que a revolução não será televisionada. O Hip Hop é revolucionário, por isso não existe uma junção do rap e da mídia. O que queremos falar, dependendo do que for, não vão querer mostrar. Interessa mais mostrar o rap comercial do que o rap que mostra a realidade nua e crua. O rap é contra a mídia, mas não só contra a mídia, é contra todos aqueles que oprimem o povo.

Este trecho exprime bem as relações entre o movimento Hip Hop e a mídia. Claro que, também neste caso, existem exceções, porém a esmagadora maioria compartilha da mesma opinião.
O espaço encontrado pelos rappers na dita grande mídia não satisfaz. Para se apresentar em uma grande emissora não se pode cantar o preconceito, as dificuldades de viver na favela, o dia-a-dia de um detento. E se não for pra isso, não existe sentido em expôr os trabalhos. Além disso, existe o outro lado da história. A mídia realmente não dá espaço para que esses aristas mostrem seu trabalho justamente pelas letras combativas. Existem casos, inclusive, de artistas que conseguiram este espaço e tiveram suas músicas editadas por programas de TV.
De um lado, rappers não "se vendem" à grande mídia de maneira alguma e preferem continuar trilhando um caminho paralelo a este processo, no centro desta roda estão Racionais Mc's e adjacências. De outro, os artistas se inserem neste meio e pagam o preço de serem criticados pelos que não o fazem, além de correrem o risco de terem suas músicas cortadas nos programas de TV por onde passam.
O que Happin' Hood chama de rap comercial consegue espaço e continua vendendo discos e dando lucros exorbitantes para as gravadoras. Mas e o rap de protesto?
Por essas e outras questões, o cenário do Rap underground é uma realidade bastante palpável no atual momento do Rap brasileiro.

4. MÚSICA RAP NO BRASIL E AS DIFERENTES ESTÉTICAS REGIONAIS: RIO DE JANEIRO E SÃO PAULO.

O rap no Brasil, assim como todos os estilos que aqui chegam, sofreu (e vem sofrendo) modificações resultantes da interação com outros ritmos. Além da apropriação da cultura Hip Hop pelos brasileiros ter acontecido ao longo de um determinado período de tempo (que se estende até os dias de hoje), tornando natural o processo. Essas modificações fizeram com que o rap ganhasse certas peculiaridades pelos diferentes lugares por onde passou e se consolidou.
Essas características foram se demarcando ao longo do tempo e da experiência dos militantes do movimento. Desta maneira, podemos observar uma clara diferença entre as estéticas paulista e carioca. A seguir enumerarei algumas características inerentes a essas duas vertentes do rap.

RAP PAULISTA.

Início da década de 90, cansados de debater apenas internamente assuntos como negros e exclusão social, juventude negra no Brasil e tantos outros, resolveram partir pra algo mais prático. Assim surgem os grupos de rap em São Paulo. Nas periferias de Capão Redondo, Sapopemba e redondezas, os jovens já não agüentavam mais tantos gritos reprimidos, precisavam ser vistos e ouvidos, a periferia precisava ter voz.
E foi neste contexto que surgiu o principal grupo do cenário paulista: os Racionais Mc's. Inicialmente era composto por Mano Brown e Ice Blue (residentes da zona sul da capital) – ainda eram os B. B. Boys -, depois KL Jay e Edy Rock (oriundos da zona norte) se juntaram para formar os Racionais Mc's que conhecemos hoje. Os Racionais (como são chamados pelos fãs), são o grupo de rap mais conhecido no cenário brasileiro e da América Latina. Assim, não há como falar de rap paulista, ou mesmo de rap brasileiro, sem citá-los.
As letras estão quase sempre relacionadas à questão do preconceito e discriminação racial. Mas não é só isso, muitas vezes a temática é ainda mais densa. As dificuldades encontradas dentro da prisão, os problemas atravessados quando ganham a liberdade, os preconceitos. Veremos abaixo uma letra relacionada a esta questão.


CAPÍTULO 4, VERSÍCULO 3
Racionais Mc's

60% dos jovens de periferia sem antecedentes
criminais já sofreram violência policial;
a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras;
nas universidades brasileiras,
apenas 2% dos alunos são negros;
a cada 4 horas um jovem negro morre
violentamente em São Paulo;
aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.
Minha intenção é ruim, esvazia o lugar!
Eu tô em cima, eu tô a fim, um dois pra atirar!
Eu sou bem pior, pior do que você tá vendo
O preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno!
A primeira faz bum!, a segunda faz tá!
Eu tenho uma missão e não vou parar!
Meu estilo é pesado e faz tremer o chão!
Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição!
Pra detonar minha ascensão, minha atitude vai além!
E tem disposição pro mal e pro bem!
Talvez eu seja um sádico ou um anjo
Um mágico ou juiz, ou réu
Um bandido do céu!
Malandro ou otário, padre sanguinário!


Franco atirador se for necessário!
Revolucionário ou insano. Ou marginal!
Antigo e moderno, imortal!
Fronteira do céu com o inferno!
Astral imprevisível, como um ataque cardíaco do verso!
Violentamente pacífico!
Verídico!
Vim pra sabotar seu raciocínio!
Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo!
Pra mim ainda é pouco, dá cachorro louco!
Número um... um dia terrorista da periferia!
Uni-duni-tê, eu tenho pra você,
um rap venenoso ou uma rajada de PT!
E a profecia se fez como previsto:
Um nove nove sete, depois de Cristo.
A fúria negra ressuscita outra vez:
RACIONAIS, Capítulo 4 Versículo 3.
[...]
Permaneço vivo, luzindo a mística!
27 anos, contrariando a estatística!
O seu comercial de TV não me engana,
HÃ! Eu não preciso de status nem fama.
Seu carro e sua grana já não me seduz,
E nem a sua puta de olhos azuis!
Eu sou apenas um rapaz latino americano
apoiado por mais de 50 mil manos!
Efeito colateral que seu sistema fez,
Racionais, capítulo 4 versículo 3!



RAP CARIOCA.

Marcado pela irreverência e descontração, o rap carioca se insere em um contexto diferenciado. As letras apresentam, muitas vezes, um tom de contestação, mas não acontece na grande maioria das letras como no rap paulista.
Gabriel O Pensador, MV Bill, Marcelo D2, todos esses rappers cariocas apresentam algo em comum: muitas letras de protesto. Mas também existe algo que os diferencia claramente: a batida. Gabriel O Pensador está próximo de uma batida mais pop, muitas vezes próxima do funk, além de, com um tom de humor, compor letras de conteúdo político, social, cultural. Já MV Bill pode ser considerado mais se próximo da estética paulista, letras mais duras, tratando da discriminação social e racial. Marcelo D2, nascido e criado nos morros cariocas, apresenta uma relação muito forte com o samba, letras que falam sobre o cotidiano da favela, mas sem qualquer tom de agressividade, embora muitos digam que há protesto nas canções de D2.
Durante toda a década de 90, as dificuldades de se gravar rap no Rio de Janeiro eram ainda maiores. Hoje, podemos dizer que, apesar de ainda grandes, as dificuldades diminuíram razoavelmente. Mas falo apenas de gravar, não podemos entrar no mérito da distribuição e, menos ainda, do consumo dessas gravações. Grande parte dos rappers do cenário underground, hoje, conseguem fazer suas próprias gravações, sem precisar das grandes empresas. Precisam apenas de um quartinho, uma mesa de som, um computador, alguns cabos e caixas e, claro, muito talento e paciência.
No que se trata da distribuição, esses artistas acabam simplesmente por emitir cópias de seus discos de maneira inusitada. Fazem vários CDs e oferecem aos vendedores ambulantes, pequenas lojas e feiras dizendo "pode fazer quantas cópias quiser". "O objetivo é que a nossa música chegue ao maior número de pessoas possível, que as pessoas ouçam nosso som e fortaleça nosso trabalho" – diz o rapper TRex que faz dupla com Psicopato na banda de rap carioca RaPress.
Saindo um pouco do cenário underground e voltando aos rappers conhecidos pelo grande público, segue abaixo um trecho uma letra que serve como exemplo para analisarmos as diferenças entre o rap paulista e o carioca, principal objetivo deste capítulo.


175 NADA ESPECIAL
Gabriel o Pensador

Mais um dia mais um ônibus que eu peguei no rio
Um ônibus tranqüilo Estava vazio
E a cidade engarrafada como não podia deixar de ser
Viagem demorada O que fazer?
Sem nenhuma mulher por perto pra bater um papo esperto
Resolvi escrever um rap a mais, Mas não estou bem certo
sobre o que eu vou rimar - Diz aítorcador - (Ah sei lá)
Então eu vou no instinto pego um papel e vamos vê o quê que dá
Foi nesse instante em que eu olhei pela janela
E que susto eu levei Era ela A inflação estampada na vitrine
Atingiu meu coração E deu vontade de partir pro crime
Porque o que eu quero comprar já não dá mais
A não ser que eu faça como fez o Ferrabrás (Quem?)
Então eu tento esquecer Continuar a rimar
Mas o que eu vejo do outro lado é duro de acreditar
Mas é real E a realidade dói demais
São dois mendigos se matando pelos restos mortais
De um cachorro qualquer que foi atropelado
E vai virar rango e se der Talvez seja assado
(Hmm esses nojentos gostam disso?) - Não arrombado
Aquilo é um ser humano que chamaram de descamisado
- Um desesperado Um brasileiro como eu
Que deve sempre perguntar (Será que existe mesmo Deus?)
Não é o pensador que vai tentar responder
Eu continuo rimando tentando esquecer
Porque esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
E de repente o ônibus começou a encher
Entrou mais gente Houve um tumulto Alguém gritou e eu olhei pra ver
(Quê que é isso? Quê quetá pegando? Quê que tá havendo?)
(É um assalto malandro! Será que você ainda não tá percebendo?)
O desespero do trabalhador começou E eu também tentava esconder meu dinheiro quando alguém falou(Libera esse aí que é o Pensador mané!)
Mas eles eram meus fãs Então levaram meu boné
(Autografado né Pensador se liga!)
Alguns acharam que eu era cúmplice Quase deu briga
Mas a viagem prosseguiu e os ladrões desceram
E aí a raiva que subiu na cabeça dos passageiros
E o mais injuriado era um bigodudo
Que tinha ganhado o salário (Eles levaram tudo)
Entraram dois PMs pela porta da frente
Estufando o peito e olhando pra gente Impondo respeito
Mas os ladrões já tavam longe Num tinha mais jeito
Pra priorar levaram o bigodudo como suspeito - Ele era preto -
Coisas desse tipo é difícil esquecer
Mas eu vou continuar porque eu já disse a você que
Esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
Agora estamos passando pela praia de Copacabana
Travestis e prostitutas se acabando por grana
E os gringos vão achando aquilo tudo bacana
(O Brasil é um paraíso! As mulheres são boas de cama)
Ô gringo não força Deixa de ser imbecil
Você que vem lá de fora quer entender do Brasil
(Ha ..."O Brasil é um paraíso! - É mole?- E o inferno é onde?!)
-(Peraí Pensador)
E por falar em paraíso Olha que loucura
Subiu no coletivo uma estranhíssima figura
Com uma bíblia na mão e uma cara de débil mental
Pregando a enganação da Igreja Universal
(Ou será que era alguma outra igreja dessas?Ah num faz mal Igreja de enganar otário é tudo igual)
E o coitado foi soltando aquele papo de crente
Eu rezando: Deus me dê paciência!
Mas o pentelho desceu pra alegria da gente
E na saída do ônibus Sofreu um acidente
Se distraiu e foi atropelado pelo caminhão
Morreu esmagado com a bíblia na mão
(É morreu? Melhor do que viver nessa ilusão Num queria Deus? Foi pro céu Então) - (Num sei não)
Enquanto todos se benziam com pena do crente
Eu fui rimando Bola pra frente
Porque esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
E eu percebi que o trocador ficou fazendo carta
Prum coroa que passou por debaixo da roleta
Era um senhor de óculos,barba branca ...
Ei Peraí (Ei professor O quê que o senhor ta fazendo aqui? Quê que houve? Foi assaltado? Perdeu o dinheiro?)
-(Não ... É ... sabe o quê que é ... Eu já gastei o salário inteiro)
Hm Hm mudei de assunto ele já tava encabulado
No meio do mês o salário dele já tinha acabado
Era o meu ex-professor da escola(Coitado)
Tá fudido e mal pago Daqui a pouco tá pedindo esmola
Ele é um mestre Um baú de sabedoria
Esse num é o valor que um professor merecia
Profissional de primeira importância pro nosso futuro
Ninguém mais quer ser professor pra num viver duro
E ele desceu em outra escola pra dar mais aula
(É que eu trabalho nos três turnos Chego em casa e ainda corrijo prova) – Tchau professor - (Tchau Pensador)
Desceu mais um trabalhador que tá numa de horror
Mas esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
E nós agora estamos passando pelo bairro de São Conrado
E como o tempo tá fechando eu tô ficando preocupado Ih! Choveu!
Pronto tudo alagado
Uns vão nadando Outros morrendo afogados
E enquanto na favela tem barraco caindo
Não é que passa o Prefeito sorrindo
E se o nosso ex-presidente estivesse aqui
Ele estaria certamente num belíssimo jet-ski
Mas como nós não temos embarcação pra todo mundo
Essa triste situação tá parecendo o Fim do mundo
Pra quem tá de carro Pra quem tá de ônibus
Nessa Rio-Babilônia No Brasil do abandono
E enquanto os governantes vão boiando sorridentes
Vamos remando Bola pra frente
Porque esse rap não é sobre nada especial
É o rap do 175 que eu peguei na central
E o pior de tudo é que nessa grande viagem
Nada disso do que aconteceu foi novidade
E as autoridades estão defecando
Pro que acontece ao cidadão brasileiro no seu cotidiano
Porque pra eles isso não é nada especial
No dos outros é refresco Num faz mal
E fecham os olhos pro que até cego já viu:
O revoltante retrato da vida urbana no Brasil!
E eu não me refiro ao 175 ou qualquer linha da central
Eu tô falando do dia a dia a qualquer hora em qualquer local
Porque esse rap não é sobre nada especial...


NOTAS______________________
1 - Chico teve fundamental importância dentro da história da MPB. Vencedor de muitos festivais de música da década de 60, o escritor e compositor incentivou multidões a se levantarem contra o regime militar, a censura e a repressão. Suas letras de protesto - muitas delas, inclusive, censuradas antes mesmo de chegar ao público - contribuíram muito para a formação de um grupo capaz de refletir sobre o período que o país atravessava. Alguns exemplos de composições: A Banda, Cálice, Apesar de Você, Construção, entre outras.
2- Marcelo Ridenti é professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do CNPq.
3- Entrevista completa -> http://www.brasildefato.com.br/v01/impresso/anteriores/151/cultura/materia.2006-01-21.7891255761


BIBLIOGRAFIA:
OLIVEIRA, Maria Clara. A Cultura Hip Hop no Brasil.
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade.
YÚDICE, George. A conveniência da cultura. Usos da cultura na era global.


LINKS:
http://www.gafieiras.com.br/Display.php?Area=Entrevistas&css=3&SubArea=Biografias&ID=17&IDArtista=16
http://territorio.terra.com.br/canais/canalpop/az/biografia.asp?artistaID=205
http://www.aonde.com/clique/clique.php?url=http://osrappers.cjb.net/&keys=racionais
http://www.espacoacademico.com.br/027/27cnetto.htm
http://territorio.terra.com.br/canais/canalpop/az/biografia.asp?artistaID=460
http://www.racionaisvidaloka.hpg.ig.com.br/reportagens/superstars.htm
http://gabriel-pensador.lyrics.com.br/letras/512611/
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000082005000100010&script=sci_arttext
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pid=MSC0000000082005000100010&script=sci_arttext
http://www.mundonegro.com.br/noticias/index.php?noticiaID=143
http://www.espacoacademico.com.br/027/27cnetto.htm
http://diplo.uol.com.br/2006-06,a1340
http://www.brasildefato.com.br/v01/impresso/anteriores/151/cultura/materia.2006-01-21.7891255761
http://www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?tabela=T_FORM_C&nome=Hip+hop
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